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A metáfora do césio

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Heitor Ferraz Mello

O que logo chama a atenção no romance As pequenas mortes, do goiano Wesley Peres, é o ritmo musical empregado na composição das frases. Seja na fragmentação dos períodos, seja no encontro direto de substantivos, sem vírgulas ou conexão, seja na procura de palavras-valises, ou trocadilhos repentinos: tudo isso colabora no andamento interno, e introspectivo, da narrativa. Não é apenas um artifício narrativo, faz parte constituinte do romance, já que as palavras estão no centro de sua especulação do ser, ou melhor, de Filipe Werle, que é ao mesmo tempo o narrador de As pequenas mortes, e o personagem narrador.

Vale uma explicação: Peres cria uma narrativa em primeira pessoa, dando voz a Werle, um jovem músico de 33 anos, ganhador de um importante prêmio nacional de música eletroacústica, professor universitário em uma universidade pública (em alguns momentos ele diz que o governo lhe paga para ele falar o que bem entende), vivendo uma espécie de crise pessoal, mergulhado em suas obsessões. Mas a certa altura do livro, um narrador se insere, dizendo que está contando a história de um amigo músico, de Felipe Werle, embaralhando o ponto de vista do conjunto e lançando mais uma entre tantas referências literárias – no caso aqui, Dr. Fausto, de Thomas Mann.

O livro, com suas pouco mais de cem páginas, chega mesmo carregado de referências cultas, o que nos permite fazer um recorte específico do personagem, em suas ambiguidades. Por um lado, um sujeito mergulhado no conhecimento, na alta cultura e até mesmo nas ciências, por outro, um sujeito assolado por crendices pessoais (até pelo pacto com Diabo, ou mesmo com Deus), fantasmas que circulam por dentro de sua cabeça. Entre razão e desrazão, esclarecimento e obscurantismo. Nesse sentido, um personagem que escapa pelas mãos nesse vai e vem de suas frases melódicas e poéticas, criando uma espécie de encanto lingüístico que procura afastar o leitor da desconfiança. Encanta-o, antes que isso aconteça.

As duas camadas

Se a dualidade toma conta da estrutura do romance como também do próprio personagem, as esferas narradas também se duplicam de forma curiosa. Werle é assombrado pelo medo do câncer. Tinha 12 anos em 1987 quando ocorreu o acidente com o césio 137, em Goiânia, cidade onde se passa toda a narrativa. Esse fato, um dos maiores acidentes radioativos no país, é remontado, em fragmentos, ao longo da primeira parte do livro – não seria exagero dizer que é o ponto mais emocionante da narrativa de Peres, remontando inclusive um ingênuo e doloroso diálogo entre mãe e filha contaminadas pelo césio. A partir daí, no livro, o césio se torna uma metáfora: a da doença, espalhada pelos vãos e desvãos da cidade. Tudo se torna uma ameaça. Peres cria imagens fortes, como “apocalipse de bolso”, entre outras.

Essa camada do romance – que poderíamos pensar, a camada dos pobres, dos que vivem à margem da sociedade desenvolvida, dos “ferrovelheiros” – só toca a camada do compositor erudito e universitário, e que se sente deslocado na “cidade de história historieta, mambembe”, por meio da radiação, ou melhor, da sombra da morte. Ou ainda: é a herança do seu contato com o mundo dos pobres, já que ele faz questão de frisar que tinha amigos que moravam a poucas quadras do lugar onde a menina Leide das Neves, de 5 anos, brincou com o pó branco, que no escuro ficava azul, a mão ficava azul – e morreu logo depois, sendo enterrada dentro de um caixão de chumbo. Um “pesadelo azul”, no qual, diz ele, “esse troço”, o pó branco, duas semanas depois “insufla essas quase duas mil pessoas, inflamando-lhes até os cabelos de sentimentos sem nome, angústia branca como o miolo de uma barata”.
Se há um centro nessa narrativa, ele parece justamente residir nessas duas cidades em uma (que não por acaso fica no centro do país): “A cidade de Goiânia está no coração do Brasil, ou cu do mundo, ou cu do coração do mundo, ou coração do cu do mundo”, uma “cidade em caracol dobrada para dentro de seu dentro tão externo, mosaico de interiores de outras cidades também entulhadas de interiores de outras cidades”. A escrita, que toca o delirante, vai mergulhar, por um lado, nessa cisão brasileira, por outro, no interior da própria personagem, com suas obsessões, como a morte por câncer e a boceta de Ana, sua namorada, com quem vive uma relação cheia de arestas e conflitos.

Escrita vertiginosa

A personagem de Ana não deixa de ser mais um fio corrosivo dos conflitos do personagem, um fio que se reparte nas ambiguidades do livro. Ela espelha Werle, sem se deixar enredar na possibilidade de ser uma tábua de salvação – o próprio amor não encontra espaço, tornando-se apenas um amor físico, uma obsessão pela “boceta de Ana”, que “parece um instrumento musical”, como diz o narrador ambíguo. Dentro do romance, a Ana é apenas um fantasma que perpassa várias páginas, onde o erotismo bate forte, quase se acanalhando. O narrador/personagem apaga Ana para tomá-la por uma parte do corpo. Ana é um fio-terra que busca trazê-lo para a realidade, para o concreto, mas sem resultado, pois reduzida ao prazer: “Ana: linda como uma palavra de língua morta”.

Nem tudo parece resolvido neste segundo romance de Wesley Peres, que ganhou em 2006 o Prêmio SESC de Literatura com Casa entre vértebras (Editora Record) e é um dos colaboradores do blog de poesia Mallarmagens. Sua escrita vertiginosa, em alguns momentos, parece girar no vazio, voltando-se aqui e ali a um exercício de metalinguagem, que se arrasta por algumas páginas, procurando justificar a escrita, vinculá-la ao processo psicanalítico do personagem, procurando uma ordem ao caos, como o próprio narrador dirá, e abandonando, no final, a metáfora fortíssima do césio.

Mesmo assim, As pequenas mortes é um romance que surpreende. A surpresa está na escolha inicial da metáfora, o acidente do césio, e que, salvo erro, parece mesmo apontar para um país doente, com uma doença que se espalha pelo ar, que se disfarça num azul brilhante, encantatória, mas mortal. Por outro lado, o diagnóstico do mundo de um intelectual inserido neste panorama, da cidade de Goiânia, ou outra qualquer do país, girando entre o esnobismo e a falta de sentido da própria vida. São pontos altos desse romance, ou melhor, da obra já madura desse romancista.


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