Alcir Pécora
Apresento aqui uma espécie de fichamento de Contingency, Irony and Solidarity (Cambridge University Press, 1989), do filósofo norte- -americano Richard Rorty (1931-2007), que me parece um livro especialmente inspirador para a crítica literária contemporânea. Faço o resumo, dispondo-o (quase) nas próprias palavras do filósofo, como costumamos fazer nos mais elementares exercícios escolares. Apenas, para dar alguma graça ao trabalho, fiz uma pequena seleção de frases de Rorty e as modifiquei ligeiramente utilizando como base (mas não ao pé da letra) a tradução portuguesa de Nuno Ferreira da Fonseca (Editorial Presença, 1992). Como resultado, salvo engano, foram obtidos agradáveis e instrutivos aforismos.
1. A fusão de público e privado, seja platônica (ser justo é do interesse de cada um) ou cristã (a realização pessoal está em ser- vir a outrem), pressupõe sempre a crença numa “natureza humana” comum.
2. Mesmo críticos da posição platônico-cristã conservam teorias sobre a natureza humana ao propor categorias como “vontade de poder” ou “impulsos da libido”. Tais críticos já não acreditam na solidariedade do “eu profundo”, mas continuam a crer num “eu profundo”.
3. Outros tentaram superar o dilema, negando tal “natureza” e afirmando que as “circunstâncias históricas”, a “socialização” são tudo o que existe e que não há “humano” antes da história.
No entanto, o dilema reaparece como tensão entre público e privado.
4. A tensão pode ser descrita assim: historicistas nos quais predomina o desejo de “autonomia privada” tendem a ver a “socialização” como contrária a “algo profundo em nós”; historicistas nos quais predomina o desejo de “instituições mais justas” interpretam a vontade de “perfeição pessoal” como “irracionalismo” ou “esteticismo”.
5. As posições autonomistas e coletivis- tas não são opostas, pois não é possível englobá-las numa só perspectiva. A dizer como Wittgenstein, são “jogos de lingua- gem” distintos. Não cabe optar entre eles, mas aplicar cada um aos diferentes fins que lhe são próprios.
6. Autonomistas ajudam a lembrar que as virtudes sociais não são as únicas e que há necessidade de buscar uma “nova pessoa” (ainda) não descrita pelo vocabulário comum; comunitaristas alertam para o fracasso das instituições em corresponder a convicções (já) partilhadas por muitos.
7. A conciliação possível entre as posições autonomistas e coletivistas é ter como objetivo prático uma sociedade justa e livre, na qual se permita o máximo de esteticis- mo em termos privados.
8. Um tipo com esse objetivo poderia ser chamado de “liberal irônico”, na qual “liberal” é alguém que imagina ser a crueldade a pior das práticas, e “irônico” quem entende que são contingentes suas crenças e desejos.
9. Na utopia de um “liberal irônico”, a solidariedade seria criada, não descoberta em “profundidade” pela reflexão.
10. O gênero mais próprio desta cultura pós-metafísica não é a teoria, mas a narrativa, entendida como ficção capaz de redescrever uma cultura e de produzir nela mudança e avanço.
11. Há um cisma contemporâneo: de um lado, os fiéis do Iluminismo, na qual a ciência é a atividade paradigmática do homem e as ciências naturais descobrem a verdade em vez de fazê-la; de outro, os que consideram a ciência apenas mais uma atividade humana, cujas descrições “inventadas” não atingem algo “sólido” além delas e são úteis apenas para previ- são e controle do que ocorre.
12. Dizer que o mundo está “diante de nós” significa admitir que ele não é criação nossa e que a maior parte das coisas no espaço e no tempo é efeito de causas que não são estados mentais do homem; a “verdade”, porém, não está “diante de nós”: ela só existe onde há linguagem, que é criação do homem.
13. Muitas vezes somos tentados a confundir a ideia de que o mundo pode justificar a crença na verdade de uma frase com a ideia de que o próprio mundo se divide em fragmentos em forma de frase chamados fatos.
14. Encontrarmos justificação no mundo para perfilhar uma crença ou supor-mos que o mundo tem as causas dessa justificação não é o mesmo que supor que um estado não-linguístico do mundo seja um exemplo de verdade ou que seja capaz de tornar verdadeira uma crença que lhe corresponda.
15. Convém prestar atenção no conjunto dos vocabulários em que as frases são formuladas e não apenas nas frases individuais; isto ajuda a perceber que o acerto das previsões de um desses vocabulários sobre o mundo não o torna intrínseco a ele.
16. O mundo não pode decidir quais vocabulários devem ser usados ou desprezados. Dizer isso é muito diferente de afirmar que a decisão seja arbitrária, ou que eles sejam a expressão de algo profundo e subjetivo.
17. Vocabulários não são objeto de escolha ou de vontade: perde-se ou adquire-se gradualmente o hábito de usar certas palavras.
18. As mudanças nos vocabulários são sempre mudanças na cultura. Não decorrem da aplicação racional de critérios, nem de atos gratuitos; também não referem uma adequação ao mundo, uma vez que a realidade “em si” do mundo é indiferente às descrições que fazemos dela. Tampouco referem uma expressão da natureza real do “eu”, porque o “eu” é fruto do uso dos vocabulários.
19. O mundo não proporciona critério de escolha entre metáforas, isto é, linguagens alternativas. Podemos apenas compará-las entre si, não com fatos além delas.
20. O que Hegel descreve como progresso do espírito que se torna gradualmente consciente de sua natureza intrínseca seria possível descrever como processo de mudança das práticas linguísticas europeias a um ritmo cada vez mais rápido.
21. O que os românticos descrevem como primazia da imaginação sobre a razão podia ser descrito como uma mudança cultural na qual se adquire talento para falar de outra maneira e não para argumentar bem a respeito de um mesmo assunto.
22. Linguagens e práticas sociais podem produzir seres humanos de um tipo que não havia antes.
23. O filósofo é, na melhor das hipóteses, auxiliar do poeta e não do físico: a filosofia não diz o que as coisas são, mas cria novas “descrições”.
24. Dizer que falamos a verdade sobre algo é apenas nos cumprimentar pelo êxito obtido pelo emprego de um vocabulário.
25. Abandonar a ideia de uma “verdade diante de nós”, de uma “natureza intrínseca”, não é o mesmo que dizer que não há verdade; é apenas dizer que a verdade não é “assunto profundo”, de “natureza”, e sim de exame da utilidade relativa dos vocabulários.
26. É difícil criticar um vocabulário familiar e consagrado no interior dele mesmo.
27. A filosofia interessante raramente é um exame de prós e contras de deter- minada tese, mas sim uma competição entre um vocabulário “instalado”, que se tornou prejudicial, e um “novo”, que vagamente promete grandes resultados.
28. O método científico consiste em re- descrever muitas coisas de novas ma- neiras até se criar um padrão de com- portamento linguístico, o qual, por sua vez, gera a adoção de novas formas de comportamento não-linguístico (novos equipamentos, novas instituições etc.).
29. A ideia de contingência da linguagem deve levar ao reconhecimento da contin- gência da “consciência”.
30. O progresso intelectual e moral deve ser entendido como uma “história de metáforas cada vez mais úteis” e não como “história de uma compreensão cada vez maior do que as coisas real- mente são”.
31. Novos vocabulários não descobrem melhor encaixe que os antigos em relação às coisas: apenas formulam novos objetivos.