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Imaginação e revolução

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Anderson Gonçalves

Mais regra que exceção é o gesto que impõe à figura de Rimbaud uma sorte de cordão sanitário, arrancando-o da história e da política. Conforme essa higienização, que estigmatiza e desacredita toda ideia radical de transformação social, o poeta pode ser reduzido a um rapazinho sensível e aturdi- do diante das carnificinas da Guerra franco-prussiana (1870-1871), bem como a um mocinho infantilmente siderado pela Comuna de Paris (1871). Assim, desarmado e posto em minoridade, Rimbaud torna-se presa de uma purgação cujo anseio é alcançar uma poesia que, acima de todas as coisas, pairasse soberanamente depurada. Noutras palavras, para a calma e a segurança desses leitores, o po- eta adquiriria, como astro sem atmosfera, o estatuto de “grandeza” e o selo de qualidade “moderno”: só haveria a liberdade da poesia, que aniquilaria todo contexto e, quebrando os códigos estabeleci- dos, afirmaria sem mais a desrealização do real. Contudo, o chão da radicalidade rimbaldiana talvez esteja noutro lugar.

Pouco antes da Semana Sangrenta, na qual foram massacrados e fuzilados em massa os communards, Rimbaud escreveu duas cartas hoje conhecidas como “Cartas do Vidente”. Uma é de 13 de maio de 1871, outra do dia 15. Em ambas ele desenha um projeto poético em que linguagem e ação estão irmanadas. A Comuna surge ali como um acontecimento pelo qual o poeta e sua poesia se balizam. É, em resumo, seu posto de observação, aquele a partir do qual o passado é avaliado e o futuro, projetado. A solidariedade à classe revoltada, muitas vezes chamada de crápula ou canalha pela burguesia, rima com uma poesia que se quer objetiva. E, para tanto, o estudo a que se detém arregimenta, no herdado da tradição literária, um aprendizado técnico minucioso, com o qual ele procura dar forma a uma experiência histórica nova. Ou seja, a história da literatura é reapreciada pela crítica do presente. Mas esse aprendizado implica uma maneira nova de aprender.

O aprendizado poético da Comuna

Os estudos de Rimbaud, que pretende atingir um estado de vidência, expõem um gesto histórico e poético em que os valores são deslocados, sem que isso acarrete simplesmente tomar para si a causa do quarto estado. Essa poesia objetiva pretende atingir o conhecimento do que até então não se conhece. E, para isso, é preciso que o poeta se faça vidente e se torne “o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito”. As lições de forma viriam, segundo o poeta, de “um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos”, de tal maneira que colocariam em causa os modos de sentir e compreender historicamente herdados. Longe, portanto, da poesia subjetiva e autocomplacente de certo romantismo, que se atrelava no mais das vezes a uma oposição político-filantrópica, cujo efeito era uma poesia infectada de bons sentimentos, conciliadora das fraturas sociais e ao cabo afiançadora do estado de coisas. Mas perto de um estudo que reorganiza a tradição.

Como prólogo e anunciação de seu projeto, Rimbaud abre sua carta com o poema satírico “Canto de guerra parisiense” (Chant de guerre parisien), por ele próprio nomeado um “salmo de atu- alidade” e no qual toma o partido dos parisienses então sitiados pelo exército de Versalhes. Nomeação, aliás, curiosamente afim à de Heinrich Heine que, no início dos anos 1840, chamou um ciclo poético seu de Poemas atuais (Zeitgedichte). A iniciativa, que advém de uma tradição da esquerda, se vinculava à tentativa de produzir uma nova forma de poemas políticos que atingissem o coração da atualidade. Que eles não fossem declarações piegas dos bons corações assustados nem uma pura e simples propaganda, mas a produção esmiuçada de um conhecimento: a sociedade francesa estava conflagrada em dois partidos e havia a possibilidade de construir uma sociedade nova. A guerra de classes exigia consequentemente avaliação e tomada de posição, fazendo jus ao que Rimbaud dirá mais tarde, em Uma temporada no Inferno: “O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens”.

Mas voltemos um pouco no tempo, ao momento em que, pouco depois da Revolução de 1848, se tornou consciente o aprendizado do novo. Ao falar da Exposição Universal de 1855, onde se exibia uma “floração estranha” de diferentes produtos das nações, Baudelaire supõe uma empreitada que situaria esse acontecimento.

Um homem mundano e inteligente seria transportado a um território distante. Ao desembarcar tudo o espantaria, no entanto ele se acostumaria, com mais ou menos tempo, mais ou menos trabalhosamente. Seu olhar fixo, que tomaria por bárbaro o que não fosse reconhecível, seria inicialmente contrariado. Mas, acrescenta Baudelaire, “esses cheiros que não são mais os do toucador materno, essas flores misteriosas cuja cor profunda entra pelo olho despoticamente, enquanto sua forma importuna o olhar, esses frutos cujo gosto logra e desloca os sentidos, e revela ao palácio das ideias, que pertencem ao olfato, todo esse mundo de harmonias novas entrará lentamente nele, e o penetrará pacientemente, como o vapor de uma estufa aromatizada; toda essa vitalidade ignota será acrescentada à sua vitalidade própria; alguns milhares de ideias e de sensações enriquecerão seu dicionário de mortal”.

Os produtos naturais e os artificiais primeiramente desregrariam o hipotético viajante, porém, assim como o poeta que passeia pela exposição de mercadorias e obras de arte, ele aumentaria seu repertório de ideias e de sensações. Mas não só, haveria a possibilidade de demorar a imaginação no transtorno da percepção ocasionado pelas novidades. Ele ultrapassaria o mero estado de dicionário dos novos “vocábulos” e, como gostaria Baudelaire, poderia correr os dedos “com agilidade sobre o imenso teclado das correspondências”.

O turismo e a revolta mundiais

Como se nota, o estudado desregramento dos sensos e sentidos, que Rimbaud apregoa, está também calcado na his- tória literária francesa. Ele dá prosseguimento à generalização mercantil, sóbria e alegoricamente estudada por Baudelaire, por exemplo, através do olhar do burguês turista que viaja pelo mundo. Leiamos o poema em prosa “Tarde histórica” (1874), publicado em Iluminações:

Em alguma tarde, por exemplo, em que se encontre o turista simplório, afastado de nossos horrores econômicos, a mão de um mestre anima o cravo dos prados; jogam-se cartas no fundo do tanque, espelho evocador das rainhas e das favoritas; têm- -se as santas, os véus e os fios de harmonia, e os cromatismos legendários, no poente.

Ele estremece à passagem das caçadas e das hordas. A comédia goteja sobre os palcos de relva. E o embaraço dos pobres e dos fracos sobre esses planos estúpidos!

Em sua visão escrava, – a Alemanha se constrói andaimes rumo a luas; os desertos tártaros se aclaram – as revoltas antigas fervilham no centro do império Celestial, pelas escadarias e poltronas de rocha – um pequeno mundo descorado e achatado, África e ocidentes, vai edificar-se. Depois, um balé de mares e de noites conhecidos, uma química sem valor, e melodias impossíveis.

A mesma magia burguesa em todos os pontos onde a diligência nos depositar! O físico mais elementar sente que não é mais possível submeter-se a essa atmosfera pessoal, bruma de remorsos físicos, cuja constatação já é uma aflição.

Não! – O momento da estufa, dos mares encrespados, das sedições subterrâneas, do planeta devastado e dos extermínios consecutivos, certezas tão pouco malignamente indicadas na Bíblia e pelas Nornas e que caberá à séria criatura vigiar. – Isso, entretanto não será um efeito legendário!

O poema se divide claramente em dois tempos. O primeiro é a viagem triunfal e legendária do turista ingênuo: um passado que é presente. O segundo se abre com o “Não!” que anuncia a reinvenção da vida social: um futuro. Quem narra essa história talvez possa ser caracterizado, conforme Uma temporada no Inferno, como aquele que um dia sentou a “Beleza” sobre seus joelhos, considerou-a amarga e a injuriou. Passou por poucas e boas, estudou a alucinação simples (a vidência transtornada) e a alucinação das palavras (a explicação dos transtornos). Mas, passados os delírios, constata com serenidade e sobriedade: “Isso passou. Hoje eu sei saudar a beleza”. E é bom lembrar, o verbo “saudar” tem aqui duplo sentido. É “dizer olá” e “dizer adeus”.

Uma vez que o turista, como num fetiche, está “afastado de nossos horrores econômicos”, a visão da viagem perturba-se e faz da vida e do mundo presentes um espetáculo fabuloso e fantástico. A peregrinação turística se transmuta em imagens medievais de aventura, com rainhas e favoritas, caças e hordas. Esse tempo da repetição é uma comédia, embora atordoada e embaraçada pelo aperto financeiro “dos pobres e dos fracos”. Apesar desse ligeiro desvio, a diversão retoma fôlego e ganha o mundo – Alemanha, China, “África e ocidentes”. Como diz Kristin Ross, estudiosa de Rimbaud, assiste-se a um “panorama espetacular da história mundial”. Aonde quer que se vá, “a mesma magia burguesa” galvaniza tudo.

Contra o que representa o turista simplório, a imagem do planeta colonizado, aparece a “séria criatura” incumbida de atentar para as revoltas necessárias, que não serão efeito de legendas. A experiência social mundial surge nesse poema em estado de conflagração. Figuram-se dois tempos em oposição e aprende-se, quem sabe, que “mudar a vida” é dar adeus à beleza perturbada pela magia burguesa. O real sui generis do poema apresenta-se como crítico, referindo-se tanto a “crise” quanto a “crítica”. O desconcerto da vida moderna exibe-se na forma de um real crítico.

Anderson Gonçalves é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e pesquisador- -colaborador no Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília


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